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quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Tereza em mim

No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo.

O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo unânime (...) esse direito nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia (...). O homem atrelado à carroça de um marciano – eventualmente grelhado no espeto por um habitante da via - láctea – talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais) desculpas à vaca.

A cada dois minutos Tereza se curva e lhe acaricia o pêlo. (...) o amor que se tem por um cachorro escandaliza. Se a vizinha ficasse sabendo que ela enganava Tomas, bateria em suas costas com ar cúmplice!
(...) Tereza as olha com ternura, e diz para si mesma (é uma idéia que lhe ocorre sem cessar há dois anos) que a humanidade é parasita da vaca, essa é, sem duvida, a definição que um não-homem poderia dar ao homem em sua zoologia.

Pode-se tomar essa definição como um simples gracejo e sorrir com indulgencia. Tereza porém a leva a sério, e fica numa posição arriscada: essas idéias são perigosas e a distanciam da humanidade.
(...) Descartes deu o passo decisivo: fez do homem “senhor e proprietário da natureza”. Que seja precisamente ele quem nega de maneira categórica que os animais tenham alma, eis aí uma enorme coincidência.

(...) o verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa ao nosso olhar) são as relações com aqueles que estão a nossa mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras.
Tenho sempre diante dos olhos Tereza sentada num tronco, acariciando a cabeça de Karênin e pensando no desvio da humanidade. Ao mesmo tempo, surge para mim outra imagem: Nietzsche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo, e um cocheiro espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço, sob o olhar do cocheiro, explode em soluços.
Isso aconteceu em 1889, e Nietzsche já estava também distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. (...) sua loucura (portanto seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora junto ao cavalo.

É este Nietzsche que amo, da mesma forma que amo Tereza, acariciando em seus joelhos a cabeça de um cachorro mortalmente doente. Vejo-os lado a lado: os dois se afastam do caminho no qual a humanidade, “senhora e proprietária da natureza”, prossegue sua marcha para frente.”



Trechos de A insustentável leveza do ser de Milan Kundera
me é sempre acolhedor encontrar, mesmo que na ficcção, sentimentos, pensamentos, loucuras ou "doenças", semelhantes às minhas...

Fernanda Moreno